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Mães dão à luz em casa e bebês são apresentados por vídeo durante pandemia

Procura por partos domiciliares cresce e rotina das novas famílias muda

A água da piscina de plástico estava morna e quatro gatos e uma cachorra circulavam pela sala, enquanto Kauê anunciava sua chegada. Duas enfermeiras, uma doula – que dá apoio à mãe antes, durante e após o parto – e Ricardo, o pai, auxiliavam a gestante, Louise. Ecoava um panelaço no dia 31 de março, o 13º da quarentena provocada pelo novo coronavírus, em Salvador. Às 23h42, em meio ao caos, o bebê nasceu. Com o avanço do vírus, cresceu o interesse por partos domiciliares. Mães e pais se apegam aos filhos num sinal de esperança.

O neném nasceu completamente isolado do mundo exterior. As parteiras e a doula estavam com máscara, assim como a fotógrafa que registrou o nascimento, a mais de um metro de distância. As equipes de parto não foram reduzidas, mas a presença de outros familiares do bebê foi proibida. Sete parentes de Louise Correia, 28, que viriam de Maceió para conhecer o novo integrante da família cancelaram a visita. Filho, mãe e pai estão reclusos desde o nascimento de Kauê. 

Na madrugada após o parto, Kauê foi apresentado à família por uma ligação de vídeo. Todos se emocionaram com a sua chegada. “Minha irmã chorava horrores”, lembrou. Diariamente, sem falar nas chamadas, são, pelo menos, 15 fotos do bebê enviadas em grupos de mensagens.

Kauê, os pais e as acompanhantes mascaradas depois do parto (Foto: Acervo pessoal/Louise Correia)

Depois da chegada do filho, Louise passou a receber mensagens de amigas gestantes. Algumas querem transferir o parto de hospitais para casa. No dia 4 deste mês, uma mulher de 28 anos morreu, sete dias após ser submetida a uma cesariana e dar à luz em Itapetinga, vítima da covid-19. Ela deu entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com febre e falta de ar, no dia 31 de março, e morreu na manhã seguinte. O filho dela também está com coronavírus. 

Hoje, segundo a Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab), existem seis casos confirmados de covid-19 em menores de um ano – o número de gestantes não foi informado.

“[As grávidas] estão com receios”, disse Louise. Ela e o marido escolheram o parto domiciliar desde o início da gravidez. De 2010 a 2018, o maior número de nascimentos foi registrado em março, mês de nascimento de Kauê, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não há razões científicas para isso, nem números atualizados. 

As enfermeiras obstétricas, médicas e doulas que participam de partos domiciliares observam o crescimento da procura desde meados do mês passado. As gestantes que querem mudar – dos hospitais para casa – estão com os partos marcados entre abril e julho. Só em março, Tanila Amorim Glaeser, coordenadora de um coletivo de assistência ao parto existente há 15 anos, auxiliou duas gestantes que teriam seus bebês em hospitais, mas transferiram para casa.

Ela explicou que os partos domiciliares são seguros, mas o medo não deve afobar uma decisão. “Isso nos preocupa porque a assistência a ser dada num parto domiciliar precisa ser capacitada e a consequência pode ser o oposto do que buscamos, que é a segurança”. Enfermeira de uma maternidade privada e de uma rede de parto, Ariane Teixeira de Santana, observa o interesse de gestantes com quatro a oito meses.

“A gente conversa para que essa mulher faça uma escolha por ter vontade, pelo conforto ou segurança. Não deve ser [uma escolha] guiada pelo medo”

Geralmente, no entanto, os partos domiciliares são pensados desde o quarto ou quinto mês de gestação, para fortalecer a relação da equipe com a grávida e acompanhar o pré-natal. A grávida não pode ter nenhuma doença crônica e a rede de parto contratada costuma deixar uma médica de plantão num hospital caso haja urgência.

Obstetra em duas maternidades particulares de Salvador, Sabrina Carvalho afirma que ainda não é possível, em números, traduzir a procura por partos domiciliares relacionada à pandemia. Três de suas cinco pacientes prestes a parir pensam na mudança.

“Vai precisar olhar o retrospecto, porque essas grávidas ainda vão parir, isso começará a aparecer entre o final de abril e maio, quando se espera um momento mais crítico [da pandemia]”, afirma. 

Mas, nem sempre as maternidades estão acopladas às demais alas dos hospitais, o que anula o contato de grávidas com outros pacientes. Nos hospitais Aliança, Português e Santo Amaro, por exemplo, alguns dos mais tradicionais da cidade, os espaços da emergência e da maternidade são separados. “É um trânsito completamente diferente. Se a mulher escolher pelo parto domiciliar, ótimo, mas ela tem que saber que não corre risco de parir no hospital”, opina o obstetra Antônio Carlos Vieira Lopes, do Hospital Aliança. Lá, ele diz não ter observado mudança na procura.

“A questão é que algumas maternidades estão encrostadas em hospitais gerais e isso pode trazer um receio. Mas se as alas são diferentes, não há motivo de preocupação”, complementa. 

O parto domiciliar é assistido por, no mínimo, duas pessoas – duas enfermeiras obstétricas ou uma enfermeira e uma médica, por exemplo, a depender do contrato. O custo, para isso, vai de R$ 5 mil a R$ 9 mil. A Associação Médica Brasileira (ABM) estima que o custo total de um parto da rede privada seja R$ 15 mil. Nos hospitais, a equipe de saúde varia de sete, em cesarianas, a cinco, em partos normais.

Seja como for, a rotina dos bebês, dos pais e dos familiares está completamente diferente. 

Cobrança por mudanças
Benjamin nascerá na sala do apartamento dos pais, Camille Andrade, 34, e Allan Andrade, 31. Primeiro, o bebê, previsto para este mês, nasceria num hospital privado. Num dia de ultrassom, Camille entrou na unidade e ficou espantada com a presença de pacientes de outras alas. Então, escolheu uma maternidade, mas foi informada que a doula não assistiria ao parto.

“Comecei a me sentir tão insegura que decidimos mudar, queremos o parto mais natural e humanizado”, relatou Camille, que, há duas semanas, escolheu o parto domiciliar.

Os partos cesarianos – ou seja, com intervenção cirúrgica e métodos de indução ao trabalho de parto como aplicação de hormônios como adrenalina e ocitocina – ganharam popularidade a partir da década de 80. A Organização Mundial da Saúde (OMS) atribui ao Brasil a liderança mundial da quantidade de cesáreas. Entre 54% e 84% das pessoas vêm ao mundo, de acordo com a OMS, por meio de cesarianas no país. 

A medicalização da saúde passou a insinuar um parto sem dor e, aos poucos, o hospital se tornou o caminho naturalizado por boa parte das médicas e grávidas 

Em grupo de mensagem de parto, grávida tira dúvida sobre parir em casa (Foto: Acervo pessoal/Ariane Teixeira)

No último dia 3, a Sesab emitiu uma nota técnica em que proíbe as visitas e restringe quantidade de acompanhantes da grávida em hospitais e maternidades a um. No sexto mês de gravidez, Camille tinha sofrido uma crise de ansiedade. A possibilidade de estar num hospital, neste momento, agitou seus ânimos. Já a chance de parir em casa a acalmava. O Ministério da Saúde não informou a proporção de partos domiciliares realizadas no país. 

Ficou decidido que o nascimento de Benjamim será auxiliado por duas enfermeiras, pela doula e o pai do bebê, primeiro filho do casal. Ana, avó materna, não poderá ajudar a filha nos primeiros dias, como tinham planejado. Benjamin não sai do apartamento, ainda protegido no útero da mãe, desde o dia 16 de março.

As conversas com a doula sobre o desenvolvimento do neném e as consultas com a média passaram a ser online.

O Ministério da Saúde informou que as gestantes e puérperas compõem os grupos de risco de vírus como da gripe e “o risco [do coronavírus] é semelhante pelos mesmos motivos fisiológicos”. Por isso, mesmo sem estudo conclusivo, elas compõem o grupo de risco.

Isolamento sempre foi recomendado 
Os bebês e mães de hoje precisam lidar com um afastamento imposto e que, agora, significa um ato de amor também aos avôs e avós idosos. Antes, parte dos casais já pedia à família e aos amigos que só depois de pelo menos de um mês do período chamado de Lua de Leite – quando mãe, pai e filho estão mais adaptados à nova vida – aparecessem para visitas. Uma figura mais experiente e próxima, no entanto, costumava ajudar. 

‘Qualquer coisa ruim perde o sentido’, diz Louise Correia, mãe de Kauê (Foto: Acervo pessoal/Louise Correia)

O isolamento dos pais e do bebê no primeiro mês sempre foi recomendado. Nunca foi frescura, como acusavam alguns, disse médica obstetra Marilena Pereira. Ela explicou que o recém-nascido tem o sistema imunológico em formação e, por isso, a presença de pessoas de fora pode levar bactérias e vírus.

“Sempre ficou muito a critério das famílias e, claro, agora é algo muito mais rigoroso. Existe a parte emocional, mas existe a parte médica também”, define. 

No isolamento, mães, pais e familiares – mesmo de longe – têm enxergado no nascimento um símbolo de esperança. Na casa de Kauê, sua mãe, Louise, chora de emoção diariamente. É um turbilhão de sentimentos. “Já é um momento de sensibilidade na vida de uma mãe, imagina quando você vê o mundo desgovernado lá fora, um caos, e você olha dentro da sua casa e vê um milagre”, emocionou-se. Ela e o marido tentam aproveitar o idílio. Quando olham para o filho, deitado no berço, “qualquer coisa ruim perde o sentido”, resume Louise. 

Não é porque estão isolados que devem estar distantes. Psicóloga e mestre em desenvolvimento infantil, Andreia Diniz recomenda que os laços sejam fortalecidos por meio de encontros digitais e companheirismo do casal. O nascimento não pode ser ocultado pelo luto, ela diz. “As relações podem ser ainda mais íntimas. É um cuidado não só de auxiliar o bebê, como de amparo a mãe, que vive uma experiência única em meio a uma pandemia”, recomendou.

Geração isolada
Durante três horas, Diana Alves, 27, e o marido esperaram numa sala de parto. Ficaram sozinhos até Ane Catarina estar pronta para nascer. Só então a equipe médica entrou. Ninguém da família pôde ir até o berçário ver, da parte de fora do vidro, a bebezinha. Em casa, Ane também não recebeu visitas. A rotina nos hospitais, maternidades e na casa dos bebês está completamente diferente.

O primeiro contato de Cecília com o mundo exterior, ainda rosada e embrulhada por um macacão, foi pelo celular. Avôs e avós, tios e amigos a conheceram por ligações de vídeo. Nem Luiza, 6, que tanto pediu aos pais uma irmãzinha apareceu no hospital. “Não tivemos, nem teremos, nenhuma visita, até tudo isso passar”, conta Diana. Os quatro estão isolados.

A médica Marilena Pereira explica que as mudanças buscam tornar o momento mais seguro. Ao chegar no hospital, as grávidas são triadas para checar se apresentam sintomas da covid-19. Se existirem, ela entra em isolamento e parto é feito só com a presença da equipe médica. Se não, o procedimento – seja cesariana ou normal – segue medidas de segurança como as aplicadas em Diana.

Cecília nasceu às 21h57 da última sexta (3), no Hospital Português, e permaneceu no berçário por dois dias. Não é levada sequer para o banho de sol fora de casa. A recomendação é que o bebê seja exposto para sintetizar vitamina D num ponto iluminado da residência – além dos suplementos líquidos para os recém-nascidos. 

Dentro de casa, médicas e enfermeiras obstétricas indicam o uso da máscara e higienização das mãos sempre que for tocar o bebê. Nem sempre os portadores de coronavírus são sintomáticos, então redobrar os cuidados de higiene significa expor ao mínimo os riscos de um bebê – que não é colocado no grupo de risco para covid-19.

Matéria do Correio da Bahia

Redação