Conheça a história da 1ª pessoa do país a obter registro de intersexo
Considerado um marco, processo judicial da fotógrafa iniciou em 2021. A pernambucana conseguiu o reconhecimento intersexo em sua certidão.
Após quase três anos de luta, a pernambucana Ceú Albuquerque conquistou o reconhecimento intersexo na Certidão de Nascimento.
O processo judicial foi iniciado em julho de 2021 e concluído com a expedição do documento retificado na última quinta-feira (7), no Cartório de Registro Civil de Olinda. O resultado marca também uma vitória significativa para a comunidade intersexo global.
Céu tem hiperplasia adrenal congênita, condição genética que afeta a produção de cortisol e influencia o desenvolvimento sexual e a formação dos órgãos genitais externos.
Ao nascer, Céu tinha uma genitália ambígua e foi submetida a uma cirurgia de redesignação sexual, considerada pela comunidade intersexo como uma forma de mutilação.
Após o resultado do exame de cariótipo, que avalia a estrutura dos cromossomos das pessoas, Céu foi registrada com o sexo feminino e, a partir desse processo, passou pelo procedimento cirúrgico.
Nascida em 1991, Céu ficou seis meses sem registro de nascimento, esperando o exame de cariótipo sair para verem qual a prevalência de gênero o corpo dela possuía.
“Vejo isso como a primeira violação de direitos humanos que sofri, após finalmente ter meu registro, e ser registrada como no gênero feminino, passei por uma mutilação genital, pois nem a sociedade e nem meus pais poderia aceitar a existência de um bebê com genitália ambígua, mesmo sendo um bebê saudável“, relata Céu.
A jornalista, fotógrafa, ativista e recifense, de 32 anos, é a primeira pessoa do Brasil a conquistar o reconhecimento oficial na condição de intersexo, de acordo com a Associação Brasileira Intersexo (Abrai). Com a mudança, o seu nome passou a ser oficialmente Céu, e o campo de sexo foi alterado de feminino para intersexo em sua certidão de nascimento.
“A gente estava esperando esse resultado para poder cair em campo e começar a construir políticas públicas para crianças, porque elas quando nascem são registradas como ‘sexo ignorado’ e isso não impede que elas sejam mutiladas. Este ignorado serve apenas para que o documento não saia da maternidade em branco”, informa a jornalista.
Ceú comenta que essa conquista vai abrir portas para que mais pessoas da comunidade possam ser reconhecidas no país. “O sentimento, nos últimos três anos, foi de muita ansiedade. Foi algo muito esperado. Não foi só uma ansiedade minha, mas também da Associação Brasileira Intersexo (Abrai), da qual que eu faço parte”.
Ela espera que as pessoas intersexo, já adultas, também possam ter mais autonomia, se quiserem também mudar a informação na sua certidão de nascimento. “O Brasil está pela primeira vez reconhecendo um corpo intersexo”, celebra.
No entanto, a batalha da ativista pelo reconhecimento das pessoas intersexo começou há mais de dez anos trabalhando incansavelmente por políticas públicas e apoio a pessoas e familiares de crianças intersexo. Intersexo são as pessoas que não se encaixam nos padrões nos padrões tradicionais de sexo divididos entre o masculino e o feminino. Essa condição é causada por diversas variações, como cromossomos atípicos, genitais ambíguos e produção hormonal fora do padrão.
Segundo a fotógrafa, a repercussão da notícia sobre essa vitória já alcançou quase 1 milhão de pessoas desde que foi divulgada na mídia. “Eu acho que essa é minha maior vitória. Que a pauta intersexo, mais do que nunca, agora possa ser um debate em qualquer canto, que as pessoas possam comentar e falar sobre. Então está sendo algo muito gratificante, apesar dos haters, vindo de pessoas maldosas”, destaca.
De acordo com Céu, essa decisão foi tomada porque ela possui exames e laudo que comprovam a condição. Então, outras pessoas que desejam também fazer essa retificação, precisam comprovar que são intersexo.
“A gente não está falando sobre uma identidade ou uma expressão de gênero, e sim sobre algo biológico. A própria comunidade exige que as pessoas não se autointitulem intersexo sem que tenham um diagnóstico, de preferência um laudo com CID”, orienta. As pessoas que têm esse laudo podem procurar a Defensoria Pública ou advogado particular e tentar dar entrada na justiça.
Análise do caso
De acordo com Thais Emília, presidente da Associação Brasileira Intersexo (Abrai), mulher intersexo e mãe de crianças intersexo, o processo de Céu foi iniciado por meio do parecer da Associação explicando o conceito de intersexo.
“Só foi possível essa retificação porque já havia outras conquistas anteriores como a questão do registro civil de bebês intersexo, o Dia de Conscientização Contra a Mutilação Genital Infantil e lei dedicada às pessoas privadas de liberdade, primeira lei que se conceitua o que é uma pessoa intersexo”, comenta.
Segundo a representante da Abrai, outros documentos elaborados pela Secretaria Municipal de São Paulo, construído pela associação com Conselho Regional de Psicologia fortaleceram ainda mais esse reconhecimento.
“Todos esses materiais que foram elaborados contribuíram para que a gente conseguisse essa retificação do registro da Céu. É um avanço muito grande porque acaba trazendo toda essa conscientização sobre a existência desses corpos”, aponta.
Thais Emília também enfatiza que a luta pelo reconhecimento das pessoas intersexo vem percorrendo uma história de décadas e ganharam força, na internet, através da página do Facebook Visibilidade Intersexo.
“Daí veio o meu encontro com Shay, Dionne e Olívia, outras representantes da Abrai, quando meu filho nasceu em 2016 e ficou sem certidão de nascimento, por ser intersexo, sem cartão do SUS e, eu, sem auxílio maternidade. A partir das violações que meu filho sofreu, eu levei o caso para a conferências de direitos humanos e conquistamos, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a autorização para que crianças intersexos sejam registradas com o sexo ‘ignorado’. Atualmente o aniversário dele é o Dia de conscientização contra a mutilação genital infantil, dia 26 de setembro”, ressalta, Thais.
Cronologia (dados da Abrai)
2003: A Organização Intersex International (OII) foi fundada, tornando-se pioneira no ativismo intersexo. No mesmo ano, o Dia Internacional da Visibilidade Intersexo foi institucionalizado em 26 de outubro, em alusão à primeira manifestação pública de pessoas intersexo, que ocorreu nesse dia, em 1996, na cidade de Boston, nos Estados Unidos, durante uma Conferência da Academia Americana de Pediatria.
2020: A ONU promoveu uma reunião técnica sobre intersexo com profissionais da área médica e destacou que a Declaração pede o fim de práticas mutiladoras e normalizadoras, como cirurgias genitais, tratamentos psicológicos e outros tratamentos médicos, e da esterilização não-consensual de pessoas intersexo.
2021: Vários países começaram a revisar políticas em relação a cirurgias intersexuais não consensuais. Em março de 2021, a Alemanha aprovou uma legislação proibindo cirurgias em bebês intersexo.
2021: No início de agosto de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Brasil autorizou que crianças intersexos, que nascem sem o sexo definido como masculino ou feminino, sejam registrados com o sexo “ignorado” na certidão de nascimento. A mudança passou a valer em todo o Brasil a partir do dia 12 de setembro de 2021.
2023: Em 06 de julho de 2023, propostas para o fim das cirurgias em bebês intersexuais foram aprovadas na Conferência Nacional de Saúde pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através da representação de Walter Mastelaro e Ana Amorim.
2023: É sancionado o dia de Conscientização contra a Mutilação Infantil na data de 26 de setembro, nascimento do bebê Jacob. E Protocolado como Dia Nacional contra a Mutilação genital infantil pela deputada Duda Salabert.
2024: A primeira retificação de certidão de nascimento de pessoas Intersexo no Brasil é conquistada por Céu Albuquerque, na 2ª Vara da Família e Registro Civil da Comarca de Olinda, pela Defensoria Pública. A matéria é do Diário Pernambucano.