10 anos do ‘Efeito Angelina Jolie’: os dilemas de mulheres com mutação genética por trás do câncer de mama
Detectar um gene que eleva o risco de tumores pode ser uma fonte de aflição ou uma ferramenta de empoderamento. Entenda quando esses exames são indicados — e como eles alteram o tratamento e o acompanhamento das pacientes.
Evelin Scarelli tinha apenas 23 anos quando recebeu uma notícia inesperada: ela estava com câncer de mama.
“Eu não tinha nenhum sintoma, nada que levantasse suspeita. Um dia, ao acaso, fui me espreguiçar e, ao esbarrar a mão no seio, senti algo anormal ali”, lembra ela.
Nas primeiras consultas, nem os médicos acreditavam que ela, tão jovem, poderia ter um tumor. Alguns suspeitavam que ela possuía um nódulo benigno de gordura ou algo de menor gravidade.
“Um deles confessou que demorou a me contar o resultado porque decidiu enviar a lâmina da biópsia para outros laboratórios, para ter absoluta certeza que se tratava mesmo de um carcinoma invasivo.”
Cerca de dois anos após o diagnóstico, período em que Scarelli foi submetida a cirurgias e dezenas de sessões de quimioterapia e radioterapia, uma nova notícia a surpreendeu: a mãe dela também estava com câncer de mama.
O novo caso da doença na família — somado ao fato de o avô materno dela ter falecido em decorrência de um câncer de pâncreas — foi suficiente para que os médicos sugerissem que mãe, e depois filha, fizessem um teste genético à procura de mutações relacionadas a um risco elevado de desenvolvimento de tumores.
Após a análise do DNA, a suspeita se confirmou: ambas possuíam alterações no gene BRCA2, que aumenta a probabilidade de desenvolver células cancerosas na mama (e em algumas outras partes do corpo).
À época, os testes genéticos no câncer de mama haviam ganhado destaque no mundo todo depois que a atriz americana Angelina Jolie — cuja mãe morreu de câncer — divulgou em maio de 2013 que retirou as mamas após descobrir uma mutação genética no gene BRCA1. Dois anos depois, a artista também passou por um procedimento para remover os ovários.
“Hoje, tenho 35 anos e sou mãe do Bento, de 2. Mas não foi nem um pouco fácil chegar até aqui”, diz Scarelli.
Nesses mais de dez anos desde o diagnóstico, ela enfrentou (e continua a enfrentar) uma série de dilemas — e precisou aprender a tomar decisões compartilhadas com a equipe médica sobre o tratamento do câncer, o acompanhamento de saúde e até sobre o rumo da vida pessoal e familiar.
Fazer o teste — e divulgar os resultados
“Quando descobri que era uma paciente com mutação, a orientação que recebi era de não contar para ninguém, porque a sociedade não estava preparada para nos ouvir” , lembra Scarelli.
“Por esse motivo, fiquei durante muitos anos dentro do armário, lidando com o fato de eu estar num limbo: eu não tenho mais o câncer, mas também não posso receber alta médica por causa da mutação que carrego.”
Mas, de uns tempos para cá, ela diz que se sente mais estimulada — e menos preocupada — em falar abertamente sobre a mutação que carrega no DNA.
“Mas eu entendo que muitas mulheres ainda não podem fazer isso, por questões como a relação no trabalho ou mesmo os custos do plano de saúde”, pondera ela.
A privacidade sobre este assunto é algo importante para Joana Guimarães*, que pediu para não ter o nome identificado nesta reportagem. Ela não tem — e nunca teve — câncer de mama, mas carrega uma mutação no BRCA2.
Ela fez essa descoberta depois que uma prima foi diagnosticada com o tumor e teve uma recidiva da doença há três anos.
“Havia um longo histórico de câncer de mama na família. Minha avó teve a doença bem jovem, aos 40 e poucos anos, assim como algumas primas da minha mãe”, detalha ela.
Tanto médicos quanto pacientes ouvidos pela BBC News Brasil defendem a necessidade de ampliar esses critérios de testagem e disponibilizar esse recurso no Sistema Único de Saúde — até porque essa informação pode fazer toda a diferença no tratamento e no acompanhamento das mulheres que carregam as tais mutações, como você entende a seguir.
Atitudes preventivas
O avanço da Medicina permite que casos de câncer de mama sejam tratados com cirurgias minimamente invasivas, que retiram apenas a lesão e uma pequena margem de segurança. Além disso, as sessões complementares de químio, rádio ou hormonioterapia ficam cada vez personalizadas, de acordo com a necessidade de cada paciente.
Só que isso não basta para aquelas que carregam mutações genéticas no BRCA.
“Essas mulheres têm uma chance muito grande de desenvolver um segundo câncer ao longo da vida”, lembra Guindalini.
“A probabilidade de isso ocorrer com portadoras de mutações no BRCA1 é da ordem de 50% ao longo dos próximos 20 a 25 anos”, calcula ele.
Nesses casos, os médicos podem propor um acompanhamento mais próximo, com exames de check-up a cada 6 meses, ou uma eventual retirada do tecido mamário — que pode ser substituído por próteses, se a mulher desejar.
“Além disso, recentemente foram desenvolvidos medicamentos que atuam justamente nesse defeito de reparação de DNA relacionado ao BRCA”, acrescenta o médico João Henrique Penna Reis, presidente do Departamento de Oncogenética da Sociedade Brasileira de Mastologia.
“Conhecidos como inibidores de parp, eles se aproveitam de um ponto fraco do tumor relacionado às mutações genéticas para aumentar a eficácia do tratamento”, complementa ele.
Ou seja, a realização de testes genéticos durante o tratamento de alguns tipos de câncer de mama tem o potencial de modificar os remédios que serão utilizados — ou antecipar intervenções para impedir que tumor reapareça (ou ao menos seja detectado num estágio bem inicial).
Mas e para as mulheres que sequer desenvolveram um primeiro episódio da doença? O que muda na vida delas saber que carregam a mutação X, Y ou Z no DNA?
Como o risco delas terem o câncer é superior à média da população, os profissionais da saúde podem propor três caminhos. O primeiro é realizar um acompanhamento mais constante, a cada seis meses, com o auxílio da mamografia, do ultrassom e da ressonância magnética. O objetivo aqui é flagrar um eventual tumor logo no início, quando as chances de cura chegam a 90%.
A segunda opção é partir para cirurgia profilática de retirada das mamas — a exemplo do que fez Angelina Jolie há uma década.
Para fechar, Penna Reis explica que uma terceira alternativa é realizar um tratamento medicamentoso preventivo, que diminui a probabilidade das células cancerosas proliferarem.
“É importante dizer que a cirurgia não é obrigatória e a decisão do caminho que será adotado passa muito pela preferência da mulher”, destaca Guindalini.
“Também precisamos ter em mente que algumas pacientes são muito impactadas com a imagem corporal relacionada à possível retirada das mamas”, complementa Penna Reis.
A questão é um pouco mais complexa em relação aos ovários. O problema é que algumas dessas mutações também aumentam significativamente o risco de câncer nas glândulas reprodutivas femininas.
Infelizmente, não existem exames de rastreamento capazes de flagrar precocemente a doença nessa região do corpo — e 70% das pacientes só descobrem o tumor quando ele já está numa fase avançada.
Quando certas mutações genéticas são encontradas, a paciente e os profissionais de saúde podem conversar e planejar o melhor momento para fazer a retirada dos ovários. A própria Jolie, aliás, passou pelo procedimento em 2015.
“Ou seja, a informação de um teste genético permite transformar a paciente na protagonista de sua própria história”, comemora Guindalini.
“Hoje em dia, é possível planejar cirurgias profiláticas nas mamas e nos ovários, se necessário, de modo que a mulher não desenvolva nenhum desses tumores.”
“Isso representa uma vitória. No momento em que você realiza essas cirurgias, o risco de câncer nessas partes do corpo, que antes estavam vulneráveis, se reduz em 90 ou 95%”, calcula ele.
Culpas, medos e pressões
Mas é claro que a descoberta de uma mutação genética relacionada ao câncer não demanda apenas decisões práticas e cuidados com a saúde.
A notícia traz impactos emocionais — especialmente quando a informação é recebida sem o suporte de alguém que realmente entende do assunto.
Scarelli conta que, logo após saber que portava uma mutação no gene BRCA2, o médico que a acompanhava perguntou se ela pensava em se casar.
“Eu tinha um namorado à época e respondi que, sim, gostaria de ter um casamento. Não sabia ao certo se seria com aquela pessoa, mas o sonho existia”, diz ela.
“E a orientação que o médico me deu foi: ‘Então avisa o seu namorado ou seu noivo sobre a mutação porque, se você omitir essa informação, ele pode anular o casamento sob o argumento de que você está manchando a herança genética dele’.”
“Foi dessa forma nada confortável, com frases como ‘manchar herança genética’ dos outros, que fiquei sabendo da mutação. Saí da consulta me sentindo a pior pessoa do mundo. O impacto foi pior do que quando descobri anos antes que tinha um câncer”, desabafa Scarelli.
Felizmente, ela teve a oportunidade de conversar com outros profissionais que, nas palavras dela, a fizeram se sentir mais acolhida.
Atualmente, Scarelli trabalha no Instituto Oncoguia e coordena um grupo no Facebook que reúne mulheres que descobriram alguma mutação genética relacionada ao câncer. A ideia é manter um espaço virtual para que elas possam conversar e compartilhar informações ou dúvidas.
“As pacientes mutadas precisam considerar prazos, tempos e riscos para todas as decisões da vida. E uma frase mal colocada pode gerar ainda mais cobranças”, destaca ela.
“Temos que mostrar o outro lado da moeda e transformar o medo em atitudes. A descoberta de uma mutação representa um legado altamente valioso na prevenção do câncer para si mesma e para a família. E isso vale mais do que ouro”, destaca ele.
Sonhos e projetos, frustrações e cobranças
A descoberta das mutações genéticas relacionadas ao câncer de mama ainda possuem uma terceira grande repercussão, mais especificamente nas escolhas de vida da mulher.
Um exemplo: há o desejo de ter filhos? Se sim, existe o interesse ou a disponibilidade financeira em realizar fertilização in vitro, fazer a análise genética dos embriões e selecionar aqueles que não portam as mutações no DNA? E mais: como fica a amamentação?
Scarelli passou por todos esses dilemas logo depois de se casar.
“Meu oncologista me dizia que eu precisava retirar as mamas, mas poderia me arrepender disso porque não teria a possibilidade de amamentar meu filho no futuro”, exemplifica ela.
Scarelli optou por fazer a cirurgia preventiva das mamas. Algum tempo depois, ela engravidou e teve o menino Bento, que hoje está com dois anos.
“Eu decidi que preferia estar viva hoje com meu filho, o alimentando por uma mamadeira, do que correr um risco alto de desenvolver um novo câncer.”
A decisão, claro, acarretou novas cobranças.
“Eu cheguei a me arrepender de ter retirado as mamas no dia que o Bento nasceu. Porque eu ouvia das enfermeiras: ‘Ah, o bebê está chorando, dá pra mãe que ela vai oferecer o que ela tem mais de especial’.”
Os questionamentos continuaram a acontecer nos meses seguintes.
“Eu me lembro de estar com o Bento no parquinho e, ao tirar uma mamadeira para alimentar meu filho, outras mães me questionavam por que eu não amamentava.”
Guimarães também se vê num momento de tomar decisões importantes. “Eu tenho 34 anos e ainda estou um pouquinho reticente em fazer a cirurgia preventiva nas mamas, porque isso limitaria a minha possibilidade de amamentar.”
“Mas também não sei se quero ter filhos, então estou planejando fazer a cirurgia no ano que vem.”
Para Scarelli, as mudanças proporcionadas pelos testes genéticos na prevenção ou no diagnóstico do câncer colocam cada vez mais as pacientes no centro dos cuidados.
“A sociedade está acostumada a deixar 100% das decisões nas mãos dos médicos”, constata ela.
“A descoberta de mutações genéticas modifica isso. Elas nos trazem um senso de amadurecimento, da necessidade de fazer escolhas, de criar responsabilidade.”
“Hoje eu decido junto com meu oncologista qual será o próximo passo da minha vida”, conclui ela.
*O nome da entrevistada foi alterado a pedido para preservar a identidade dela . A matéria é do Correio Braziliense .